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Análise

Luis Adrián Salgado

Por que a Noruega é o único país que não terá dívidas devido à pandemia?

- A Noruega não precisará adquirir mais dívidas para lidar com essa situação, já que o valor de mercado do fundo soberano da Noruega atualmente ultrapassa um trilhão de dólares.

Por que a Noruega é o único país que não terá dívidas devido à pandemia?

A pandemia do COVID-19 empurrou as economias para um grande bloqueio que, embora tenha ajudado a conter o vírus e salvar vidas, também causou a pior recessão desde a Grande Depressão. No momento, mais de 75% dos países estão reabrindo ao mesmo tempo em que a pandemia se intensifica em muitos mercados emergentes e economias em desenvolvimento, portanto, discutir qualquer eventual recuperação econômica é inútil.

O que é ainda pior é que as previsões feitas no início da pandemia estavam erradas. Novas análises econômicas apontam para uma recessão mais profunda do que o estimado, bem como uma recuperação muito mais lenta do que o esperado. Só nos Estados Unidos, por exemplo, o PIB caiu 32% no segundo trimestre do ano - a pior queda já registrada. Adicionalmente, espera-se uma perda cumulativa para a economia global de mais de US$ 12 trilhões de dólares [1], ou seja, mais de 10% do valor líquido mundial.

A linha superior indica o crescimento esperado com base nos índices de janeiro. O resultado final são os ajustes feitos, enquanto a área azul são as perdas cumulativas.

Perante esta situação, não são poucos os governos que tiveram de implementar vários estímulos económicos que têm sido maioritariamente creditícios. Isso representa um cenário de risco para a década atual, especialmente para países em desenvolvimento como México, Brasil e restante da América Latina. Neste contexto, a comunidade internacional assistirá a níveis de dívida pública ainda superiores aos atingidos no final da Segunda Guerra Mundial.

Em verde e ouro, a dívida média das economias desenvolvidas e em desenvolvimento, respectivamente.

E apesar de existirem iniciativas para ajudar a liberar a tensão econômica sem interesses envolvidos, como a proposta por Macron e Merkel dentro da União Européia, a única forma de evitar qualquer estagnação tanto no curto quanto no longo prazo é através da existência de fundos nacionais que servem de apoio a este tipo de situações. A Noruega é um dos Estados que dispõe de um fundo soberano cujo objetivo é fazer face a contingências económicas como a vivida este ano.

A Noruega não escapou aos estragos causados ​​pela pandemia, aliás, foi duplamente afetada: em primeiro lugar, pelos baixos preços registados na indústria petrolífera no início do ano; em segundo lugar, devido à cessação das atividades económicas como consequência da quarentena em que se encontram um grande número de países do mundo. Em números, espera-se uma contração de 5% para o PIB norueguês. Como referência, no ano passado a Noruega registrou US$ 410 bilhões em produto interno[2], portanto as perdas devido à pandemia ultrapassariam US$ 20 bilhões.

Felizmente, como mencionado acima, a Noruega não precisará adquirir mais dívidas para lidar com essa situação, pois atualmente o valor de mercado do fundo soberano da Noruega ultrapassa um trilhão de dólares. Ou seja, o fundo equivale a 2,5 vezes o valor nominal valor do PIB da Noruega, então 5% não deve ser um grande problema.

O fundo norueguês é na verdade o maior FSI (fundo de investimento de riqueza soberana) do mundo e grande parte do valor vem dos dividendos que a indústria do petróleo tem gerado no país. Porém, a relação da Noruega com o petróleo não ultrapassa 5 décadas de existência.

Do peixe ao óleo

No final da década de 1950, muito poucas pessoas acreditavam que os ricos depósitos de petróleo e gás poderiam ser descobertos na plataforma continental norueguesa. O Norwegian Geological Survey chegou a escrever ao Ministério das Relações Exteriores em 1958 afirmando que a possibilidade de encontrar carvão, petróleo ou enxofre na plataforma continental ao largo da costa norueguesa poderia ser descartada. Felizmente, a descoberta do campo de gás de Groningen, na Holanda, em 1959, abriu os olhos das pessoas para a perspectiva de que poderia haver hidrocarbonetos sob o Mar do Norte.

Em maio de 1963, o governo norueguês declarou soberania sobre a plataforma continental norueguesa. Foi adotada uma nova lei declarando que todos os recursos naturais ali existentes pertenciam ao estado norueguês e que somente o Rei (na prática, o Governo) tem autoridade para conceder licenças para exploração e produção. A primeira rodada de licenças da Noruega foi anunciada em 13 de abril de 1965, e 22 licenças de produção cobrindo 78 áreas geograficamente delimitadas (blocos)[3] foram concedidas.

Distribuição espacial das licenças no Mar do Norte.

As licenças conferiam o direito exclusivo de explorar, perfurar e extrair petróleo e gás nas áreas a que se aplicavam. O primeiro poço de exploração foi perfurado no verão de 1966, mas acabou seco. Posteriormente, foi feita a primeira descoberta de petróleo na plataforma norueguesa, em 1967, porém, não foi considerada economicamente viável na época. As explorações continuaram seu curso, embora tivessem grandes dificuldades para serem realizadas - ondas de mais de 15 metros de altura e ventos de até 110km/h tornavam a região um dos mares mais hostis[4].

Não foi até 1969 que, pouco antes do Natal, a Phillips Petroleum Company informou às autoridades norueguesas da descoberta de Ekofisk, que acabou por ser um dos maiores campos de petróleo offshore já descobertos. A produção do campo começaria em 15 de junho de 1971 e a partir desse momento começaria a história de sucesso da Noruega.

Inicialmente, as empresas estrangeiras dominaram as atividades de exploração e foram responsáveis ​​pelo desenvolvimento dos primeiros campos de petróleo e gás. Não demoraria muito para que a Noruega estabelecesse o princípio de que o Estado deveria ter 50% de participação em cada licença de produção. Somado a isso, o governo norueguês optou por ficar fora da OPEP, bem como criar sua própria companhia de petróleo em 1972 – a Statoil.

Nesse mesmo ano, em setembro de 1972, o parlamento norueguês submeteu a um referendo a questão de saber se a Noruega deveria aderir à Comunidade Econômica Européia. A proposta foi rejeitada por uma pequena margem, após o que o governo norueguês passou a negociar um acordo comercial com a UE que daria às empresas nacionais acesso aos mercados europeus. Com o tempo, a Noruega renegociou e refinou esse acordo, eventualmente ingressando na Associação Européia de Livre Comércio e no Espaço Econômico Europeu.

Conscientização futura

Em 1990, o governo norueguês criou o Fundo Petrolífero (Oljefondet), conhecido hoje como Fundo Global de Pensões do Governo (GPF-G) ou também conhecido como Fundo Soberano Norueguês. O objetivo do fundo é investir parte do grande superávit da indústria petrolífera e, assim, gerar dividendos para continuar o reinvestimento e ajudar a cobrir possíveis déficits orçamentários. Isso cria um amortecedor importante e garante que a economia da Noruega não fique completamente à mercê do preço mundial do petróleo.

O fundo é gerido por uma divisão do Banco Central da Noruega. É o maior fundo de pensões do mundo, embora claramente não seja um fundo de pensões típico, uma vez que, em vez de se basear em contribuições individuais, se baseia nos lucros do petróleo. O governo pode gastar até 3% do retorno do fundo ajustado pela inflação.

O Norges Bank mostra o valor do fundo ao vivo em seu website

A primeira retirada do fundo ocorreu em 2016, quando o governo teve que retirar cerca de US$ 780 milhões. Isso foi para combater uma crise econômica causada pelos baixos preços mundiais do petróleo. Dessa forma, o fundo cumpriu exatamente uma das funções com as quais foi criado.

Em meados deste ano, a Noruega planeja sacar um recorde de US$ 37 bilhões de seu fundo soberano, ou seja, 3,7% do valor de mercado no momento. Para dispor de tal fundo, o governo terá que embarcar em uma venda de ativos históricos para gerar caixa. Tal ato destaca a extensão dos danos econômicos causados ​​pela crise do Covid-19 e o colapso nos mercados globais de petróleo, com o maior exportador de petróleo da Europa Ocidental enfrentando agora sua pior depressão econômica desde a Segunda Guerra Mundial.

O fim da galinha dos ovos de ouro

O fundo soberano é um bom começo para preparar a economia norueguesa para o futuro. Atualmente valendo mais de 250% do PIB da Noruega, o país poderia efetivamente fechar por quase três anos e não ter que se preocupar. Este é um bom buffer, mas não é suficiente a longo prazo.

Felizmente para o povo norueguês, o país está bem posicionado para fazer a transição para um mundo sem petróleo, já que 98% da eletricidade do país vem de hidrelétricas e um grande número de consumidores escolhe veículos elétricos. De fato, um em cada três carros comprados no país é elétrico, tornando a Noruega o segundo maior mercado de veículos elétricos (atrás apenas da China, estado com população 270 vezes maior que a do estado nórdico). Adicionalmente, a indústria petrolífera representa apenas 20% do produto interno bruto total [5].

A Noruega também pretende alcançar uma indústria livre de emissões, bem como uma frota mercante sob o mesmo padrão. Curiosamente, como a frota marítima é responsável por quase todo o consumo de petróleo da Noruega, quanto mais próximo o país chegar dessa meta, maior será a relação custo/benefício.

A indústria do turismo, que explora a paisagem de beleza estonteante da Noruega, continua a se expandir e continuará assim por algum tempo. Finalmente, a velha base da economia, a indústria pesqueira, continua bastante sólida. Aconteça o que acontecer, vários órgãos, como o FMI, acreditam que a transição da Noruega deve ser relativamente suave, desde que tenha pelo menos um olho no futuro.

Fontes

    [1] World Economic Outlook Database, April 2019″. IMF.org. Fondo Monetario Internacional. Revisado el 03 de agosto de 2020.

    [2] World Economic Outlook Database, April 2019″. IMF.org. Fondo Monetario Internacional. Revisado el 03 de agosto de 2020.

    [3] Hodne, Fritz. An Economic History of Norway, 1815-1970. Tapir: Trondheim, 1975.

    [4] Hodne, Fritz. The Norwegian Economy, 1920-1980. London: Croom Helm and St. Martin’s, 1983.

    [5] Grytten. Ola Honningdal. “The Gross Domestic Product for Norway, 1830-2003.” Norges Bank: Occasional Papers, no. 1 (2004b)


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